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[The following is a Portuguese-language translation of the article I originally published in English on May 27, 2023: https://greenwald.locals.com/post/4065447/thoughts-on-grief-and-the-grieving-process]
A dor, tristeza e tormenta do luto se aprofundam à medida que o tempo passa depois da morte de um ente querido. Tudo vai piorando - ficando mais difícil, e não mais fácil - com a passagem dos dias e semanas. Eu sei, racionalmente, que as coisas vão começar a melhorar, ou ao menos ficar mais fáceis de aguentar, com o tempo. Mas isso só poderá acontecer quando a realidade da perda tiver sido internalizada e aceita - um pré-requisito fundamental para a cura e a recuperação. Mas internalizar a enormidade do fato de que alguém está realmente morto - e que não há nada que se possa fazer quanto a isso - demanda muito tempo. Três semanas não arranham nem a superfície desse processo.
Um dos desafios mais duros do luto, desse processo, é o de encontrar um equilíbrio entre encarar a dor e a tristeza sufocante da perda de frente, sem, por outro lado, se afundar nela ao ponto dela te consumir e incapacitar. Se por um lado não se pode permitir afundar na tristeza, também não se pode buscar uma combinação de trabalho, distrações, exercício e demais atividades para acelerar um "retorno à rotina" e entrar num estado de negação e escapismo para evitar a dor e o sofrimento, e fugir da necessidade de processar essa realidade imensa e terrível, se anestesiando da dor. A dor e o sofrimento virão cedo ou tarde, e quando mais se evita ou adia esses sentimentos, mais estrago eles farão no futuro.
Se você tentar se fechar totalmente ao luto, fingir que ele não está ali, vai fracassar com certeza. A dor e a tristeza virão no pior momento possível, quando você estiver menos preparado, e vai se expressar da forma mais destrutiva possível. Mas se você mergulhar nessas águas com muita frequência, por tempo demais, e se deixar desconectar da normalidade da vida, das pessoas no seu entorno que você ama, e das coisa que você valoriza, vai acabar paralizado e consumido pela tristeza, drenado de todas energias e da força vital, e se encontrar consumido pela escuridão total, paralisia mental e exaustão física - tomado por um pavor frio e sem fundo.
Não existe equilíbrio perfeito entre esses dois extremos. É preciso lutar diariamente para se manter a uma distância saudável tanto do luto total quanto da negação enganosa. O mais desafiador é saber o quão longo esse processo será - provavelmente não vai acabar nunca. Na primeira semana após a morte de David eu falei para mim e para nossos filhos que as primeiras duas semanas seriam dificílimas, mas não seriam as mais difíceis, e que os piores dias ainda estão por vir: quando o choque passar e a realidade inescapável começar a assentar, uma vez que as cerimônias e rituais estiverem completos e feitos, quando o resto das pessoas começar a seguir em frente a virar a página: seria então que nós terminaríamos sem nada além da realidade da perda e da ausência. Esses dias sim, eu sabia, seriam os piores.
Mas a verdade é que falar isso é uma coisa; sentir na pele é uma coisa totalmente diferente. Mesmo quando você acha que está momentaneamente protegido, o luto penetra sem aviso, e das formas mais agudas. Outro dia eu estava lendo as notícias e me deparei com esse artigo do The Guardian sobre um vazamento de documentos ultra-secretos na Austrália. Havia no segundo parágrafo do artigo uma descrição de David - que copio abaixo - e foi a primeira vez que me deparei com essas palavras. Foi um momento duro e arrebatador, para o qual eu não estava preparado, porque não importa o quanto você se esforce e se prepare, é preciso de muito tempo até que a realidade da morte seja totalmente internalizada. É muito duro aceitar que a pessoa com quem você esperava dividir a vida - décadas, ainda - não vai voltar mais, nunca mais, e que aquela pessoa cheia de força e de vida está agora morta.
Não sei explicar porque essa frase me afetou tanto - já devo ter lido centenas de artigos, obituários e homenagens a David que tratavam claramente do fato dele estar morto. Mas essa frase, tão comum, indica a realidade de que David é uma pessoa que pertence ao passado, que não tem mais presente nem futuro nesse mundo. O artigo não tratava da morte do David - o assunto era outro - mas se referiu casualmente a David como uma pessoa morta - agora e para sempre. Essa sutileza teve um impacto desestabilizante, para o qual eu jamais poderia ter me preparado. Uma única frase desorientou todo meu emocional, até que eu conseguisse encontrar outra coisa pra me ocupar e seguir adiante: um resumo bem claro do meu desafio diário.
Tudo isso adquire uma complicação - enorme - com o fato de que eu preciso encontrar esse equilíbrio não só por mim, mas também pelos meus filhos, cujo luto é igualmente intenso, ainda que diferente. É igualmente difícil saber o quanto espaço dar para eles se ocuparem com distrações como entretenimento, lazer, esporte, amigos e escola para que eles possam ter algum respiro. A tentação de incentivá-los a embarcar no em mil atividades escapistas é forte porque é o instinto mais natural e compreensível preferir ver seus filhos felizes e sorrindo do que tristes e chorando.
Mas é tão importante para eles sentir a perda, o luto, a tristeza e a dor quanto é para mim. Vejo se pode fugir. A dor chega de uma forma ou de outra. E assim, muitas vezes me encontro na situação confusa e desorientadora de, ao ver meus filhos chorando e demonstrando tristeza, sentir uma espécie de conforto e alívio por saber que é bom, saudável e necessário que eles sintam e processem isso tudo - mesmo tendo que lidar com a sensação horrível, dolorosa e opressora de ver seus filhos sofrendo.
[Rio de Janeiro, 30 de Março de 2022: Quatro meses e uma semana antes de David ser hospitalizado]
Para aqueles interessados, eu recomendo vivamente o editorial publicado no New York Times pela editora Sarah Wildman, cuja filha de 14 anos, Orli, faleceu recentemente depois de uma longa e obviamente dificílima batalha com câncer. Sem pensar muito, mandei uma mensagem para ela agradecendo pelo artigo, e acabamos compartilhando experiências, condolências e conselhos. Uma coisa que eu não esperava é o imenso conforto que sinto ao ouvir as experiências de outras pessoas que estão vivendo essa mesma experiência de luto e perda - sejam pessoas que eu conheço bem, que eu conheço um pouco ou que eu não conheço nada. Essas trocas me fazem um bem imenso. É um velho cliché dizer que a morte física é o grande equalizador do mundo, mas é verdade: é o destino inevitável para o qual todos caminhamos, independente de status, situação de vida ou origem.
E se isso é verdade em relação à morte, deve ser verdade também para o luto. A não ser que você opte por nunca amar para se proteger da dor da perda - um cálculo trágico, terrível e autodestrutivo - a impermanência material de tudo que amamos significa que todos nós vamos, cedo ou tarde, precisar encarar o luto e a dor da perda até que chegue a nossa vez de morrer. Há hoje amplo estudo sobre o que as pessoas mais se arrependem quando estão no leito de morte, sobre o que as pessoas que sabem que estão morrendo dizem que queriam ter feito mais o que queriam ter feito menos.
Praticamente ninguém que está chegando ao fim da vida diz que deveria ter trabalhado mais ou ganhado mais dinheiro (muitos se arrependem de trabalhar demais). A maioria diz que queria ter passado mais tempo com seus entes queridos. Ao fim e ao cabo, uma das poucas coisas que nós realmente valorizamos e de onde extraímos experiências verdadeiramente significativas e prazerosas são os momentos de conexão humana - foi isso que a evolução moldou os seres humanos a buscar e querer. Somos animais tribais e sociais. É por isso que o isolamento é uma das punições mais duras que podem ser impostas a alguém - ou a si próprio.
E é justamente por essas razões que, ao olhar para trás e refletir sobre as últimas semanas, ou mesmo sobre o longo período de hospitalização do David, percebo que os pensamentos e mensagens e gestos de carinho que recebi de tanta gente - que dirá daqueles que tiraram tempo para me escrever, muitas vezes longamente, sobre suas próprias experiências com hospitalizações prolongadas de pessoas queridas - me trouxeram muito mais conforto do que eu jamais poderia ter imaginado.
O editorial da Sarah Wildman é brutal, comovente e perturbador. Ela não mascara ou eufemiza, nem tenta fazer a perda da filha mais confortável para ela ou para os outros. Perder alguém que você ama tão jovem não é bonito nem confortável. É trágico, profundamente doloroso e incomparavelmente triste. Um dos melhores conselhos que recebi nessas últimas semanas foi o de evitar idolatrar David ou construir uma mitologia em torno de sua vida e morte. Eu amava um ser humano, não um santo infalível ou uma divindade de outro mundo. E uma das coisas que mais me comoveu no artigo da Wildman foi a discussão aberta e sincera sobre o medo que sua filha tinha da morte. Teria sido muito mais palatável - para si e para os outros - dizer que a pessoa que você perdeu estava em paz com a morte. A filha dela não estava, e tampouco estava David. Eles queriam viver, tinham medo da morte e lutaram pela vida com toda força até o fim.
Essa é uma verdade dura e dolorosa, que às vezes torna tudo muito mais difícil - te faz focar não só no que você perdeu, e que seus filhos perderam, mas também no que a pessoa que acabou de morrer perdeu. Mas também é possível encontrar beleza, paz e significado ao encarar essa realidade de frente. É desrespeitoso com a vida de alguém criar mitologias, seja sobre sua vida ou sobre sua morte - independente do quão confortantes isso possa parecer. No artigo, Wildman se recusa a fazer isso, mas também deixa claro que sua filha inspirou a ela e a outros não só através da forma que viveu mas também da forma que morreu: com determinação, coragem e força.
Ainda que à época eu tivesse criado um bloqueio e negasse a realidade que eu ainda não estava pronto para aceitar, os médicos do David deixaram claro nos dias depois de sua hospitalização na UTI em agosto do ano passado que a probabilidade que ele fosse sobreviver era bastante baixa. A inflamação e infecção haviam incapacitado seu pâncreas e causado falência renal já nas primeiras 48h de internação. Ao fim da semana ele estava entubado e a sepse já levara a inflamação para o pulmão. Uma rápida pesquisa no Google mostraria o quão sério é esse quadro para qualquer pessoa, independente de idade ou estado de saúde.
Que David tenha, por 9 meses excruciantes, lutado tanto para viver nos trouxe alguns momentos terrivelmente difíceis - ver ele e seu corpo definhar repetidamente depois de achar que ele estava quase se recuperando foi provavelmente a pior coisa que eu já testemunhei. Mas esse período também ofereceu a mim e aos nosso filhos a oportunidade de desfrutar de alguns dos momentos mais comoventes, profundos, genuínos, duradouros e cheios de amor que tivemos juntos, como escrevi há alguns meses atrás num texto sobre gratidão, quando achávamos que David estava melhorando.
Pode parecer, numa análise rápida, que se David tivesse tido uma morte rápida naquela primeira semana, ele teria se poupado e nos poupado de muito sofrimento. Talvez seja verdade. Mas eu estou convicto de que se ele tivesse morrido na primeira semana, sem que tivéssemos - nós e ele - tido a oportunidade de conviver por esses meses, tudo teria sido muito, muito pior. Cada momento que se pode compartilhar com alguém que você ama - mesmo que seja num quarto de UTI com a assistência de toda máquina possível - é uma benção e uma dádiva. E ao lutar com a sua valentia característica, David nos ofereceu inúmeros momentos de amor e ternura que, por critérios normais, nós não teríamos o direito de desfrutar.
Eu queria muito que houvesse um livro, uma combinação mágica de palavras, uma determinada forma de interpretar as coisas que pudesse fazer a dor, ainda crescente e cada vez mais profunda, desaparecer para mim e para os nossos filhos, e para aqueles que amavam David, aqueles que sentem sua falta e para todos aqueles que amaram e perderam alguém especial em suas vidas. Não existe esse elixir mágico. Mas isso não significa que não existam coisas que ajudam, ou que se esteja condenado a uma vida de sofrimento sem fim, tristeza e desespero, ou que seja impossível encontrar conforto, inspiração, ou ainda mais amor em meio à tristeza do luto.
Para que isso ocorra, porém, é preciso ter a humildade de aceitar aquilo que está fora de nosso controle. Eu não posso trazer o David de volta. Isso é óbvio. Mas eu tampouco posso encontrar uma forma de evitar o tipo de dor, tristeza e desespero que são frequentemente debilitantes. Eu percebi isso de início e já não tento mais evitar a dor por completo.
Há momentos que eu procuro ativamente essa dor, e ela vem. Mas ela também vem quando eu menos espero, quando eu penso que estou à salvo – como aconteceu ao ler “falecido” junto ao nome do David no artigo do Guardian, ou em outros mil momentos, quando pra uma foto dele e nossos olhares se cruzaram, ou quando um dos nossos filhos conta alguma história do David que faz com a memória dele se materialize na minha frente. Quando essa dor chega, eu já não resisto nem tento fugir. Às vezes eu me demoro na dor de propósito, até que ela se torne fisicamente insuportável. Em outros momentos, eu me permito distrair, seja através do trabalho, do lazer, ou passando tempo com meus filhos, conversando sobre coisas que não sejam diretamente relacionadas ao luto que compartilhamos pela morte de David, o meu marido, o pai deles.
Não sei se eu voltei para o trabalho rápido demais ou se, ao contrário, estou me permitindo sucumbir demais à vontade de não trabalhar. Todos os dias eu tento seguir meu instinto: no dia de hoje, o que é melhor para mim e para nossos filhos? Me dou também a tolerância de responder errado, de calcular mal. Percebi que todos os caminhos levam à tristeza e ao luto, mas alguns desses caminhos também passam por lugares cheios de momentos bonitos em família, fontes de inspiração, e a oportunidade de abraçar o espírito de luta, compaixão, força e amor que definiu David e sua vida.
Tenho certeza que uma das coisas que mais ajuda é a união de nossa família em torno do projeto de celebrar, tornar concreto e estender o legado de David. Um dos maiores orgulhos de David foi a construção e inauguração do centro comunitário que idealizamos e construímos no Jacarezinho, a comunidade onde David foi criado e se criou. O centro oferece aulas gratuitas de inglês, informática, atendimento psicológico, aconselhamento para dependência química, assistência PET e uma cozinha comunitária que distribui quentinhas para quem precisa. Nós vamos, em família, construir o “Instituto David Miranda”, para levar esse trabalho que fazemos no Jacarezinho para mais comunidades. Nossos filhos estão animados para cumprir papéis importantes nesse instituto - eles compreendem visceralmente que isso honra a memória de David e que isso o encheria de orgulho - e trabalhar nesse projeto em família é uma das poucas coisas que, em meio a esse momento tão difícil, nos traz o mais puro conforto e nos enche de energia.
O processo de luto é terrível, mas não é desesperador. Eu estaria mentindo se dissesse que não há momentos que eu acho que não vou aguentar. Todos os dias, a realidade de que David perdeu sua vida e que nós perdemos David na nossa vida fica mais pesada, mais dolorosa. Mas os seres humanos são resilientes. A gente se adapta, se acostuma, se ajusta. Não tenho como provar, e houve um tempo na minha vida que eu não só rejeitava essa ideia como faria chacota dela, mas hoje acredito sinceramente que a vida tem um propósito, e, no fim das contas, a morte também. Por ora, eu todos os dias vejo a minha dor e a dos meus filhos se aprofundando e se tornando mais pesada.
Mas eu também vejo, todos os dias, nossa família junta, encontrando maneiras de nos conectarmos uns aos outros e à nossa família. A vida, o espírito, e legado e, de alguma forma, até a morte do David hoje nos ajudam a seguir em frente, sempre em frente. Eu daria tudo para trazer David de volta. Mas essa opção não existe, então atravessar o luto, viver a dor, e de alguma forma encontrar uma forma de nos fortalecermos e seguir adiante são os desafios que temos de encarar por enquanto. Desafios duros, mas, acredito eu, possíveis.